Capítulo 7
As pessoas têm o hábito de criticar as motivações que são diferentes daquelas que elas possuem. O que deixamos sempre por fazer é esquecer o quão diferente somos. Nem todos querem ser funcionários públicos, ou desejam um vestibular, uma profissão maçante, o sucesso, um casamento. Nem todos desejam o mesmo que talvez você deseje. Alguns querem apenas ter o essencial e viver intensamente; alguns desejam apenas pintar, escrever, lutar, jogar e amar. Alguns desejam amar o suficiente para uma noite, enquanto outros para uma vida inteira. Se aceitarmos que somos diferentes e o que nos motiva depende dos interesses, das vontades e dos sonhos de cada um, quem sabe possamos ter no futuro uma geração mais livre para sonhar, para desejar e realizar seus reais objetivos. Uma geração mais feliz, sem as limitações das grades que nos aprisionam atualmente.
***
Ainda hoje eu me pergunto o que eu teria feito se soubesse a verdade. Se soubesse o que estava acontecendo. Pergunto-me se teria impedido, se teria sido contra ou se teria me calado e quem sabe até o ajudado. Sinceramente, não sei dizer. Talvez eu fizesse o melhor para ele – o que eu julgaria como sendo o melhor – ou talvez não. Só o homem que conhece o que lhe motiva sabe até aonde sua determinação pode levá-lo.
Aqueles foram dias difíceis. Eu passava todo tempo possível com o Alexandre e tentava distraí-lo ao máximo. Contava piadas, apelava para algumas paródias de músicas conhecidas, mas era difícil arrancar qualquer sorriso dele.
Aqueles foram dias difíceis. Eu passava todo tempo possível com o Alexandre e tentava distraí-lo ao máximo. Contava piadas, apelava para algumas paródias de músicas conhecidas, mas era difícil arrancar qualquer sorriso dele.
Sempre que entrava no quarto o encontrava do mesmo jeito, deitado olhando para janela, para um céu distante, perdido em seus pensamentos. Tentei por diversas vezes falar de outros assuntos, mas era em vão, ele sempre voltava para o ponto que a história havia parado. A única vez que falou por iniciativa própria de outro assunto foi para me perguntar se já havia visto o mar.
– Já sim. O mar é lindo – respondi.
– Não só lindo, é encantador, misterioso e divino – disse e calçou seus chinelos – vamos ao jardim.
Saímos do quarto escondidos. Desviamos dos possíveis locais onde encontraríamos a enfermeira dele. Atravessamos todo o bloco até chegarmos ao jardim.
– Eu amo minha família, minha mãe, meu pai; eu jamais os abandonaria – sentou em um dos bancos – só se não houvesse outra opção. Entenda Artur, eu e meu pai podemos não nos entender, mas no fundo eu sei que ele me ama e sei que mesmo ele sendo desse jeito durão, ele sempre estará ao meu lado. É o jeito dele de demonstrar o que sente.
– Você tem sorte Alexandre, tem uma família e amigos que te amam. Quem ama protege e você faria o mesmo por todos.
Ele se levantou com esforço, cambaleou e foi até o chafariz. Colocou a mão direita sob a água.
– Você também tem Artur. Não é por que você esta sozinho hoje, sem seus pais, sem muitos amigos que isso deve ser sempre assim.
– Mas eu não estou sozinho. Sou cheio de amigos cara! – Falei em uma débil tentativa de defesa.
– Eu sei... – ele disse sorrido – ainda vou precisar muito de você, da sua amizade, do seu apoio e minha família também. Estou certo que você não nos decepcionará – aproximou-se até onde eu estava sentado.
– Eu estarei sempre aqui cara.
– Sabe, a primeira vez que entrei no mar foi em Fortaleza. Em uma praia chamada Mundaú – ele sorriu e sentou-se novamente – Eu fiquei horas dentro de um carro vendo o mar passando na janela até que finalmente chegamos na praia. Quando me vi a poucos metros da água eu não resisti, saí correndo em direção aquele mar como um menino que corre para os braços da mãe, você tinha que ter visto.
– Nunca fui a Mundaú, mas já vi fotos. Parece realmente muito bonita.
– É linda cara. O mar parece uma enorme piscina, o sol reflete na água de um jeito que chega a cegar por um instante. O mar é calmo, sem ondas e um rio deságua ali perto. Mas o melhor não é isso, o bom mesmo é que você consegue andar até bem distante da costa e a água não passa da cintura. Quando você fica bem distante e não consegue ver mais nada além do mar ao seu redor, você se sente parte daquilo, é como se o mar fosse parte de você e você parte daquele mundo. É uma sensação maravilhosa.
– Deve ser mesmo. Pra você falar assim.
– Eu me senti muito bem naquele dia – fechou os olhos – Eu nunca pensei na morte ou tive alguma vontade para esse momento – ele disse de uma hora pra outra – para quando esse momento chegasse.
– E nem é pra ter Alexandre, você esta ótimo, esta se recuperando e logo estaremos correndo nas praias de Fortaleza, comendo camarão, lagosta, paquerando na praia, pegando aquele sol.
– Mas isso é algo que estamos sujeitos, eu e você, basta estarmos vivos – o tom era grave, o clima estava pesado agora, seu rosto estava sério, não havia mais sorrisos – e meus pais são muitos tradicionalistas, jamais permitiriam algo não muito ortodoxo.
– Como o quê, por exemplo? – comecei a me preocupar com o rumo que aquela conversa tomaria.
– Como doação de órgãos e ser cremado, por exemplo – disse olhando firmemente em meus olhos – ter minhas cinzas jogadas ao mar. No ponto mais distante possível da costa de Mundaú.
– Definitivamente isso é o tipo de coisa que seu pai não aprovaria – gargalhei um pouco e bati em suas coxas tentando aliviar a tensão – mas eu consigo creme e passo em você com uma espátula de pedreiro, já é metade do seu desejo.
– Preciso que diga isso para eles caso aconteça algo comigo Artur. Preciso que me ajude nisso.
A frase saiu como uma bala, seca e cruel. Atingiu-me com força e me deixou sem reação por um instante.
“O que ele estava pensando? Não, isso não era justo. Falar de morte? Logo agora que as coisas estavam melhorando?! E me pedir isso assim?”
– O que você pensa que está fazendo? – tentei usar o tom mais duro possível e fazer a cara mais séria que conseguiria – Não é hora de falar sobre isso, aliás, nunca é hora. Muito menos de me fazer um pedido desses – levantei em um salto, peguei-o pelo braço; estava pronto para arrastá-lo até o quarto e sedá-lo se preciso fosse – eu não lhe dou esse direito, entendeu? Não permito que você me inclua nisso.
– “Nisso”, o que Artur?
– Nessa sua desistência, nesse seu abandono. Não quer viver? Não quer mais estar ao lado das pessoas que te amam, que estão aqui contigo e não te abandonaram?! Se for isso que você quer, o problema é seu, mas não me inclua nisso!
– Não desisti da vida Artur, muito pelo contrário. Eu luto por ela. Por isso estou aqui. Um dia todos nós partiremos, só quero que respeitem meu desejo.
– Então lute de verdade, dedique-se ao tratamento, já fazem dias que você está aqui e não melhora fisicamente. Você continua se alimentando muito mal, só os remédios não farão efeito se não houver força de vontade.
– Só gostaria que você se lembrasse desse pedido, caso algum dia algo me aconteça e você esteja por perto. Já avisei a Roberta e a Michele também.
– Vamos, vou te deixar no quarto Alexandre, definitivamente não quero mais conversar com você hoje.
Puxei-o pelo braço por alguns metros até ele se livrar de mim com um movimento para trás. Olhei firmemente em seus olhos esperando que atitude ele tomaria. Ele apenas me fuzilou com o olhar, continuou andando e passou por mim. Acompanhei-o até o quarto, mas não entrei. Os pensamentos fervilhavam em minha mente, se eu pudesse, juro que sacudiria aquele cara e diria boas verdades.
“O que ele pensa? Ele não sabe o que é sofrimento! Sempre teve uma vida perfeita, ainda tem e esta jogando tudo fora! Que droga! O que fizeram com você Alexandre? Não é possível que ele tenha mudado tanto por conta de uma garota que o largou.”
“Amanhã vou dizer que essa história não me interessa mais, porque eu já sei o final, estou vivendo-a nos últimos meses. Não me interessa saber de uma garota que se acovarda e some pelo motivo que for e muito menos quero ouvir uma história de um cara que não sabe superar uma perda. Cansei!”
Meu rosto certamente deveria está refletindo toda a raiva que eu sentia quando encontrei dona Maria aflita conversando com Dr. Marcos no corredor. Os olhos dela foram como ímãs me guiando até os dois.
– Meu filho, que bom que encontramos você aqui. Precisamos muito da sua ajuda.
– Claro Dona Maria, no que for preciso.
Dr. Marcos tocou em meu braço esquerdo antes que sua ex-esposa continuasse e fez um gesto para que eu o seguisse. Aquela foi a primeira vez em todos aqueles dias que ele se dirigia a mim.
– Vamos conversar só nós dois ali no outro corredor – falou me conduzindo com o braço.
– Claro – respondi.
Caminhamos até um corredor mal iluminado que ficava a direita, poucos metros à frente. Ele só parou depois que saímos da vista de Dona Maria.
– Artur?!
– Exato.
– Artur, eu pude perceber o quanto você é amigo e gosta do Alexandre. Portanto, gostaria que entendesse que tudo que conversarmos aqui é para o bem dele.
– Certamente, Dr. Marcos – Disse num tom mais curioso que complacente.
– Meu filho vem passando por uma fase difícil e sabemos que logo passará, mas precisamos fazer algo para ajudá-lo. E sabemos também que ele está longe de estar em condições de decidir qual coisa. Mesmo sendo sobre a própria vida dele.
– Perdoe-me doutor, mas eu não concordo. O Alexandre esta sim em uma fase complicada, que mal sabemos o motivo, mas ele está se recuperando e já decidiu colaborar, tenho certeza que ele quer sair dessa – a verdade é que no fundo, eu não tinha certeza de nada.
– “Mal sabemos o motivo” Artur? Não sabemos nada. Ele só conversa com você, que também não nos diz muita coisa – não foi difícil notar a ironia naquela frase.
– Seu filho desabafa comigo e eu apenas retribuo a ele a mesma confiança que ele me transmite.
– Mas você poderia ao menos dizer para os pais dele o que esta acontecendo rapaz. Não é certo vocês nos manterem longe enquanto só observamos a situação piorar a cada dia.
– Piorar? Até onde eu sei, ele chegou aqui praticamente morto; não comia, não bebia, tinha perdido mais de vinte quilos; não aceitava se medicar e não falava com ninguém. Agora ele esta se medicando e se alimentando. Só que nenhum resultado vem assim da noite para o dia Dr. Marcos.
– Você não sabe, não é? – a expressão de deboche foi demais pra mim.
– Saber o que D o u t o r? – tentei ser tão irônico e debochado quanto, mas não deve ter sido suficiente, pois o homem não pareceu se abalar um só segundo.
– Não tem conversado com o medico dele? Tem?
– Não. Não tenho.
Toda segurança que eu sentia há poucos instantes desaparecerá por completo. Dr. Marcos deve ter percebido, pois apenas sorriu com mais ironia.
– Os remédios que ele supostamente vem tomando não estão fazendo os efeitos que deveriam fazer. Ele está realmente se alimentando, mas não ganhou praticamente peso algum. Nós estávamos estudando a possibilidade de deixá-lo sob vigilância 24 horas ou mantê-lo sedado, pois as enfermeiras desconfiam que ele retira o soro, as vitaminas e os remédios quando elas saem do quarto. Ele deve esvaziar em algum lugar. Ou esta contando com a ajuda de alguém.
Eu estava tão perplexo com tudo aquilo que nem me dei conta da “leve” insinuação do pai do Alexandre.
– Eu realmente não sabia. Eu sei, aliás, percebi que ele não havia ganhado tanto peso assim, mas achei que ele estava se recuperando. Ou quis acreditar.
– De qualquer forma eu já decidi. Amanhã ele será sedado e vamos tratá-lo desta forma até ele estar recuperado, depois vamos interná-lo em uma clínica particular para que ele tenha um acompanhamento profissional. Este rapaz não esta bem da cabeça.
– O Senhor não pode fazer isso!
– Eu já decidi Artur. Amanhã começaremos a tratá-lo da forma que deveríamos ter tratado desde o início.
– O senhor não entende que só vai piorar as coisas? Ele precisa nos ter por perto nesse momento, ele precisa sentir que nós precisamos dele, que ele tem amigos e principalmente uma família que ele pode confiar. – enquanto eu falava Dr. Marcos deu-me as costas e partiu em direção ao ponto de onde saímos – O senhor por um acaso planeja mantê-lo sedado pelo resto da vida? Porque é isso que terá que fazer se não tratar isso como algo que pode ser curado com nosso apoio, amor e principalmente compreensão. – Já estávamos na vista de todos, mas falei tão alto que isso era indiferente.
– Já foi decidido – falou sem se virar.
Dona Maria com lágrimas nos olhos, apenas acenou se despedindo.
Enquanto ambos saíam juntos do Hospital, eu permanecia parado sem saber o que fazer. Não havia como impedir, eu não poderia fazer nada, a sensação de impotência foi devastadora.
“O que eu posso fazer? Eles são a família.”
“A não ser que...,sim é claro! Eu poderia avisá-lo, ele não seria pego de surpresa e não pensaria que todos nós tomamos parte disso.”
Voltei o mais rápido que pude em direção ao quarto. O corredor parecia ter quilômetros, cada quarto passava ao meu lado em um tempo muito maior agora, 89, 90, 91...
“como eu pude falar em compreensão com o Dr. Marcos se eu não consigo compreendê-lo? Se eu não consigo entender o que ele quer?”
... 95, 96, 97...
“mas eu não posso permitir que ele pense que fiz parte disso, eu não posso permitir... Eu vou tirá-lo daqui! É isso, vou tirá-lo daqui!”
...100, 101.
Abri a porta do apartamento e encontrei Alexandre na mesma posição de sempre, deitado olhando pela janela o mesmo céu estrelado. Roberta também estava lá, como não cruzamos nos corredores, logo conclui que ela já deveria está nos esperando no quarto quando retornamos do jardim.
– Você voltou – ela disse com um sorriso nos lábios.
– Alexandre, eu preciso falar com você. É importante e urgente.
Ele virou para mim com a maior calma possível e sorriu.
– Não se preocupe com nada meu bom amigo. Sua companhia hoje já me é o bastante.
– Você não está entendendo Alexandre, eles estão planejando...
– Artur ! – Disse em tom maior que o meu, mas sem perder a serenidade e não permitiu que eu concluísse – Eu apenas preciso da sua companhia esta noite, do meu amigo, por favor, deixe os problemas para depois. Sente-se eu tenho uma história para terminar – apontou para o espaço vago no sofá ao lado da Roberta – e nós sabemos que não podemos passar desta noite.
***
Dia 14 de março. Naquele dia completava um mês desde a última vez que ele a viu; um mês que ela estava desaparecida. Alexandre acordou aquela manha e notou que estava no escritório, ele havia caído no sono sentado com o corpo jogado sobre a mesa. Esfregou os olhos e viu os cartazes que haviam sobrado, viu o computador ligado, uma taça virada com algumas gotas de vinho e não muito longe duas garrafas igualmente vazias. Lembrou vagamente da noite anterior. Preferiu levantar a ter que ficar pensando em mais uma noite como aquela. Sentiu a cabeça rodar, o corpo quase não aguentou o próprio peso – ele vacilou por um instante – segurou-se na cadeira tentando evitar a queda – era inevitável, há dias que ele mal se alimentava – seu corpo caiu pesadamente sobre a cadeira fazendo-a correr para trás e atingir a parede. As lágrimas tornaram-se inevitáveis e incontroláveis e junto com ela a revolta e a raiva o fizeram derrubar tudo que havia na mesa de uma só vez com o braço direito. O barulho deveria ter acordado Dr. Marcos – ele pensou – mas não houve nenhum outro ruído nos segundos seguintes – ele levantou e trancou a porta do escritório – seu corpo caiu novamente, desta vez a queda foi proposital, deixou-se cair com as costas apoiadas na porta. A possibilidade do que era inimaginável, até então, fez seu coração doer, ele não aguentava mais, não conseguia mais evitar aquele pensamento. “Ela está morta.” Há dias que ele lutava incansavelmente contra aquilo, não queria se desmotivar, não queria imaginá-la em algum lugar, morta, seu corpo gelado, sem vida depois de ter sofrido. Recusava-se a admitir que ele pudesse nunca mais vê-la. Até aquela manhã. Foi a primeira vez que ele repetiu para si mesmo que preferia mil vezes ter sido enganado e deixado para trás. Permitiu-se a imagem dela sorrindo de mãos dadas com outra pessoa, feliz no colo de alguém, mas segura. Não sentiu raiva, nem ciúmes, sentiu apenas um grande alivio no peito.
Aquele dia até que passou rápido, não se arrastou tanto como os anteriores, talvez porque pela primeira vez ele atendeu a ligação de uma pessoa conhecida, Roberta. – vinha evitando isso nas últimas semanas, não queria conversar, nem queria tratar ninguém mal, apenas sabia que não estava com cabeça para outro assunto – Eles conversaram por cerca de 40 minutos, tempo o suficiente para ele fingir que estava tudo bem e ela fingir que acreditava.
Depois disso os dias voltaram a se arrastar. Um após o outro, na mesma lentidão na mesma rotina. Dias e semanas se foram. Ele acordava, checava o e-mail, o celular, saia para repor cartaz em algumas ruas, fazia algumas incursões pelo bairro que o senhor Francisco morava, mas até aquele momento tudo havia sido em vão.
Foi em uma dessas incursões por volta do dia 12 de março que ele descobriu que o velho senhor havia falecido; passou pela casa no momento que algumas poucas pessoas saiam pelo portão e ele pode ver o caixão no centro da sala. Entrou na casa e caminhou até onde o caixão estava. Ninguém pareceu o notar. Foi estranho ver aquele velho senhor ali; eles mal haviam conversado, mas seu coração ficou triste, muito triste ao saber que ele havia falecido. Fez uma oração e tocou em sua mão sobre o peito, – estava fria – alguns minutos depois ele abriu os olhos e já preparava para sair quando ele a viu; o mesmo olhar, o mesmo sorriso, o cabelo mais curto, o rosto mais jovem. Seu entusiasmo foi tanto que ele tropeçou em algumas pernas de pessoas que estavam sentadas no sofá – quase caiu – olhou novamente para aqueles olhos, aquele sorriso, “era ela sim”, seu coração disparou, via sua Ana Carolina com aproximadamente 12 ou 13 anos, sentada no colo daquele que agora estava no caixão a sua frente. Foi até o canto da sala, pegou o porta-retrato – as mãos tremiam – e enquanto uma lágrima percorria seu rosto ele o beijou.
– Com licença. Posso ajudá-lo? – a voz era estranhamente familiar.
Ele virou-se e reconheceu a mesma mulher que o atendera na primeira vez que ele foi até aquela casa. Ela também o reconheceu.
– O senhor novamente? O que faz aqui? Por favor, me devolva isso. – tentou tomar o objeto das mãos do Alexandre, mas com um único puxão ele não permitiu.
– Eu conversei com o senhor Francisco e ficamos amigos – desconversou – Mas me diga porquê mentiu para mim ?
– Menti? Sobre o que rapaz?
– Sobre ela – apontou para o porta-retrato, para Ana Carolina – porque me disse que ele não tinha família, não tinha ninguém, que morava sozinho?
– Eu não menti, ele me disse que não tinha filhos, nem parentes. – ela falou e tentou pegar o porta-retrato novamente – Olha rapaz, comecei a trabalhar aqui dias antes do dia que você apareceu e eu lhe garanto que nesses dois meses ninguém nunca nem apareceu para fazer uma mísera visita para o pobrezinho.
– Eu estive aqui certa vez e ele me disse que não a conhecia. – apontou novamente para Ana Carolina na foto.
– Você não entrou, deve ter conversado com ele do portão, por isso não o considero uma “visita”.
– Moça eu só preciso saber onde ela está? Porque ele mentiu para mim dizendo que não a conhecia? O nome dela é Ana Carolina – naquele instante ele se deu conta que nem disso ele tinha plena certeza – ela está desaparecida há quase dois meses.
A empregada olhou nos olhos dele, respirou fundo e acenou para que ele a seguisse. Foram em direção a cozinha. Ela pegou duas xícaras e colocou o café que estava em uma garrafa térmica no centro do balcão.
– Não sei o quê ele disse para você. Não sei o que ela é para ele, sei apenas que aquela foto foi tirada a mais de dez anos quando ele precisou ser hospitalizado pela primeira vez. Desde lá ele foi internado várias vezes por conta das complicações com o diabetes. Ele era muito teimoso.
– Eu sempre a deixava no começo da rua, ela me dizia que morava aqui. Depois ela desapareceu. Eu retornei e falei com você e com ele e todos me disseram que nunca a viram! – levantou a voz e o corpo da cadeira – cansei disso, vou chamar a policia!
– Rapaz, ninguém aqui esta mentindo pra você. Eu estou apenas dizendo o que eu sei.
– Quem me garante? Eu estou a dois meses procurando essa garota, vim aqui duas vezes falei com vocês e ambos me garantiram que ela não morava aqui e que vocês não a conheciam. E agora eu encontro uma foto dela em lugar de destaque na sala. O que vocês querem que eu pense?
– Eu não quero que você pense nada, só quero que entenda que eu não sabia disso. Você deve se lembrar que eu mal olhei para foto que você mostrou quando veio aqui e falou comigo, eu estava assustada. – levantou-se e foi em direção a um armário que ficava no corredor próximo a porta da cozinha.
– Tudo bem, mas e ele? Porque mentiu? Ele olhou bem a foto e nós tivemos tempo o suficiente para eu contar toda historia para ele. Porque ele mentiu?
– Não sei. Não posso te dar essa resposta. Mas eu tenho algo que pode ajudar em alguma coisa. Não sei. Talvez não seja nada. Mas você pode tentar.
– O que é?
– Nesses meses que eu trabalhei aqui notei que ele nunca recebia visita, ligação, que ele nunca mencionava família, ou alguém especial. Mas eu sempre o via olhando com carinho para esta foto – enquanto falava folheava uma velha agenda telefônica que havia retirado da gaveta do armário – só peço que você não se apresse em culpar o Chico, ele era um homem bom, e eu tenho certeza que ninguém que olha para uma foto de uma criança como ele olhava seria capaz de fazer algum mal para ela. Era um olhar paterno.
– Não quero julgar ninguém, mas eu preciso de respostas.
– Há pouco mais de um mês ele recebeu uma ligação, ficou certo tempo conversando e depois pediu para eu pegar a agenda e anotar um telefone. Só preciso encontrar... Achei. Ela deu um grande sorriso.
– De quem era esse número?
– Não sei, mas pelo menos uma vez a cada dois dias ele me pedia para discar e ficava um bom tempo conversando, às vezes até gargalhando, – ela fez uma expressão pensativa e soltou um leve sorriso – mas uma semana antes dele falecer, que Deus o tenha, ele passou a me pedir para ligar todos os dias e eu só discava e passava o telefone para ele. – ela arrancou a folha que o número estava anotado e a entregou para Alexandre.
Ele pegou a folha e não viu nada de mais, apenas um número de um telefone e logo baixo, entre parênteses, outro número estava escrito, “(342)”. Pegou seu celular e discou o primeiro número, após três toques do outro lado da linha alguém atendeu.
– Telefonista, pois não.
– Ramal 342 por gentileza. – ele pensou rápido e concluiu que aquele número poderia ser um ramal.
– Desculpa senhor, mas não seria apartamento 342?
– Sim, claro, apartamento.
– Ok. Transferindo sua ligação. Obrigada.
Uma música de espera começou a tocar enquanto a ligação era transferida. Logo em seguida ouviu-se o toque da chamada – a telefonista não anunciaria a ligação – tocou uma, duas, três, quatro vezes até que alguém atendeu com uma voz cansada, sonolenta, mas que ele reconheceu na mesma hora.
– Alô?!
– Ana Carolina? É você?