CAPITULO 2
Não foi naquela noite que ele me contou os motivos de sua tristeza. Disse-me apenas, o que tinha feito naqueles quatro anos, de forma resumida. Contou-me sobre a decisão de inicial de cursar Direito – atendendo as expectativas do pai – e depois a decisão de abandonar o curso ainda no segundo período. Passou a cursar Administração, nem tanto por vocação, mas porque era algo que iria contra a opinião do pai. Alexandre era assim naquela época, meio revoltado com o mundo. Iniciou o curso de Administração e acabou expulso de casa.
Foi morar na casa da mãe que havia se separado do pai quando ele ainda era criança – a mãe morava sozinha em um bairro humilde e ao contrario do pai de Alexandre levava uma vida simples – Ele teve que dormir em uma rede na sala da casa, sem ar condicionado e sem ventilador. Teve que se habituar à falta do conforto e das regalias que estava acostumado. Mas isso não foi difícil. Sua determinação era muito maior. (...)
Os esportes, a dança e o teatro que ele tanto gostava foram aos poucos perdendo espaço em sua vida. Os amigos foram sumindo. É lógico que não em sua totalidade, as amizades verdadeiras permaneceram. Mas seu circulo de amigos, aqueles que o “admiravam” e faziam sempre questão da sua presença. Esses se resumiam agora a duas amigas. Mas ele sabia que essas valiam por todas as outras.
Começou uma busca incansável por um emprego. Sabia que sua mãe estava feliz com sua presença, mas sabia também que precisava ajudá-la com as despesas – Não queria ser um peso a mais para ela – Procurou emprego por dias, semanas e quando as semanas ameaçaram virar meses ele se viu na obrigação de não voltar mais para casa de mãos vazias. Um vizinho lhe ofereceu uma vaga para lavar carros no centro da cidade – Ele aceitou de imediato – Passou dois meses dizendo para mãe que tinha conseguido um emprego em um escritório. Saia de casa às 6 horas todos os dias, arrumado, com sua farda escondida na bolsa. Uma camisa e uma bermuda.
Neste período enquanto lavava os carros e ganhava uns trocados, Alexandre continuava sua procura por um “emprego” de verdade. Visitava os escritórios de recursos humanos e deixava seu currículo, ouvia promessas e esperava. Não era nada fácil, sem experiência, com a faculdade trancada. Mas ele se recusava a desistir.
Em uma dessas ocasiões ouviu que uma empresa de produção artística estava selecionando moças e rapazes para atuar em uma produção nacional que seria gravada na cidade. E ouviu também que eles pagariam um cachê razoável. Ele sabia que não poderia se dar ao luxo – Mas eles pagariam cachê ?! – E pensou que um tempo sem ter que passar o dia molhado não o faria mal. E ele poderia atuar novamente, mesmo como figurante, quem sabe vestir um figurino interessante – a magia que cercava o teatro sempre o fascinara – Então ele decidiu se inscrever. E assim o fez.
A seleção foi feita em um hotel da cidade, e ele não teve dificuldades em ser aprovado para atuar como figurante. Sua cor, seu porte e seus olhos – eram castanhos, mas de tão claros beiravam algo em torno de um mel com cinza – o ajudaram a conseguir uma vaga entre o elenco francês da trama. Gravou diversas cenas com o grupo dos franceses ao redor do Teatro Amazonas. Em certa ocasião gravou a mesma cena 20 vezes em baixo de um sol de 35º com um figurino que consistia em blusa, calça, paletó e, sobretudo. Mas ele estava se divertindo.
Quando as gravações completaram a segunda semana e concluiu-se a participação do elenco francês, alguns figurantes foram dispensados e outros remanejados para outro núcleo da minissérie. Alexandre foi aproveitado para o núcleo português. E o local das gravações passou a ser um edifício antigo no centro da cidade.
Relembrando a história agora. Acredito que foi exatamente neste ponto que o destino começou a se desenhar e a conduzi-lo. E ele sem perceber já estava completamente entregue e a mercê do que aconteceria. Não havia mais volta.
Depois da noite que o encontrei no bar, começamos a nos falar com mais freqüência. Passamos a marcar um papo no mesmo local, dia sim dia não. Eu evitava perguntar qualquer coisa sobre o que lhe deixava triste. Em vez disso falávamos de política, futebol e lembrávamos o passado. Eu tive enfim a oportunidade de lhe agradecer pela surra que ele me livrou. E ele só disse – Sem problemas. Você faria o mesmo por mim! – Fiquei ainda mais envergonhado da verdade que só eu sabia.
Eu percebia claramente que ele evitava certos assuntos, como quando perguntei sobre a Manu, uma das meninas mais lindas do colégio, que ele namorava naquela época. Ele se limitou apenas em responder – Não deu certo. – Ou quando eu elogiava alguma mulher no bar, e tentava paquerá-la. Ele olhava para rua e ficava distante. Eu sabia que havia algo de errado. Mas queria deixá-lo à vontade para dividir aquilo comigo se quisesse e quando quisesse.
Os dias passaram. E na metade do mês de abril eu tive que viajar por trinta dias para fazer um treinamento na matriz em São Paulo. Retornei em uma quinta feira, dia 14 de maio. O sol, como em tantas outras manhãs em Manaus. Castigava-nos. Passei o dia com mil problemas para resolver. Conferir pagamentos, liberar verbas para o operacional, negociar com fornecedores. Seria mais um dia como tantos outros. Se não fosse por aquela ligação.
Meu telefone tocou por volta das 15 horas. Observei o visor e não reconheci o numero. Normalmente eu não atenderia. Principalmente porque estava no local de trabalho e minha função me obrigava a dar exemplo. Mas estava na copa naquele momento, e estava sozinho.
– Alo. – atendi no terceiro toque.
– Senhor Artur? É o senhor Artur? – Uma voz de mulher. Tremula e aparentemente muito nervosa.
– Sim, pois não.
– Desculpe se estou incomodado, mas precisamos de sua ajuda. Meu filho não esta bem, não tem se alimentado e tivemos que interná-lo – a mulher começou a falar e não parava mais, fiquei ouvindo sem entender muita coisa – eu não sei meu Deus o que ele esta pensando, mas agora não quer nos ver, nem a mim nem ao pai. Nem a ninguém. E se recusa a se alimentar ou receber soro.
– Senhora calma. Não sei como posso ajudar. Quem é seu filho? – A primeira coisa que pensei que talvez fosse à mãe de algum funcionário.
– Ele não quer falar com ninguém, estamos todos preocupados e sem entender o que esta acontecendo – a mulher continuava cada vez mais nervosa – ele é muito fechado não conta nada, não conversa, nem comigo nem com o pai. E ate as amigas dele não sabem explicar. E foi uma delas que me deu seu numero, disseram que vocês têm conversado bastante nos últimos tempos. Quem sabe você possa convencê-lo a se alimentar. – o tom de suplica daquela senhora realmente me comoveu.
Naquela altura eu já fazia idéia do que estava acontecendo. Mas algo dentro de mim não queria acreditar assim tão fácil.
– Senhora só me diga quem é seu filho? – ainda com uma ponta de esperança mórbida que fosse algum funcionário.
– É o Alexandre. Meu filho. Seu amigo Artur.
Mesmo esperando por aquelas palavras, elas me atingiram pior que um soco na boca do estomago.
Fui para o hospital onde ele estava internado – o que levou cerca de 50 minutos – encontrei os pais dele na recepção. A mãe Dona Maria se consolava nos ombros de um rosto familiar. Era Michele, e logo ao seu lado a Roberta – as amigas verdadeiras que o tempo se encarregou de filtrar – Dr. Marcos conversava com um homem de jaleco. Médico provavelmente.
Roberta foi a primeira a me ver. Levantou-se. Dirigiu-se a mim e me abraçou. Foi estranho porque mal nos falávamos no colégio.
– Que bom que você veio. – disse olhando em meus olhos. Eu apenas assenti com a cabeça.
Michele me viu e sorriu – e eu retribuí – Dona Maria segurou minha mão e com um simples olhar me agradeceu por estar ali. Virou-se para o Dr. Marcos e disse:
– O rapaz chegou. O amigo dele. – Disse e me apontou.
Dr. Marcos apenas lançou-me um olhar e balançou a cabeça. Depois voltou sua atenção para o medico que ainda falava. Dona Maria me tomou pelo braço e me conduziu corredor adentro. Quando passamos pelo médico que ainda falava com o Dr. Marcos, ouvi:
– Esse tipo de intervenção é uma opção, mas a família tem que estar de acordo – Compreendi na mesma hora qual era o assunto que eles conversavam.
Dona Maria me deixou na porta do apartamento 101. Sorriu e largou minha mão. Abri a porta e encontrei um Alexandre bem diferente daquele que vira pela ultima vez. Estava magro. Muito magro. Uns 10 quilos a menos, no mínimo. E estava pálido. Olhava para a janela concentrado em seus pensamentos. Nem notou minha presença.
– Quer dizer que não posso te deixar sozinho por alguns dias que você não aguenta? – Disse me aproximando e sorrindo.
– O que você faz aqui? – falou me olhando de relance.
– Me disseram que tinha alguém aqui querendo almoçar picanha. E você sabe picanha não leva desaforo para casa.
Ele sorriu. Quebramos o gelo.
– Olha estão todos preocupados a toa, eu estou bem.
– Eu sei cara. Mas são seus pais. Seus amigos. Eu entendo que você queira guardar isso ai que te incomoda só para você. Mas pensa se é justo conosco? – decidi que aquela era a hora de falar, e dizer que eu estava ali para ajudá-lo – Pensa se é justo com as pessoas que te amam. Que te querem bem. Eu, assim como todos aqui, só quero te ajudar. Mas você precisa querer.
Olhei para ele tentando encontrar seus olhos e toquei seu ombro.
– Me diz Alexandre. O que esta acontecendo?
Ele olhou para o teto, seus olhos vermelhos, lagrimas escorrendo dos cantos. Segurou minha mão – sentei ao seu lado na cama – ele me puxou para perto e me abraçou e começou a chorar. Chorava tanto que soluçava. E entre um soluçar e outro com a voz tremula, falhando ate, eu pude ouvir.
– É saudade Artur. É só saudade. Muita saudade Dela. – E continuou chorando.